Contando da dor, me dizia daquilo que não mais tinha. Falou da perda.
-
Morreu por negligência... E o enfermeiro ainda disse que eu tava muito nervoso!
Aqueles olhos marcados brilhavam e sua lágrima quase escorria junto da
minha. A minha porém, deslizou pelo rosto.
- É
muita sujeira. Eles jogam tudo pra baixo do tapete.
-
E sobra é pra gente limpar.
Sobrava pra ele limpar. Reparei no saco preto que ele apoiava cada hora
em um dos ombros, mas que, apesar do esforço, as mãos pesadas não deixavam de
carregar.
-
Escuta... se tem três cachorros: dois fortes de raça e um vira-lata. Qual você
chuta primeiro?
Ele fortaleceu a voz e preencheu
seu discurso com argumentos sobre a legislação brasileira e a forma de se fazer
política.
-
O futuro não pertence mais a mim não. Ele é de vocês, da juventude... Tem que
ficar de olhos espertos. Se os caras quiserem pegar alguém, quem cês acham que
eles vão pegar primeiro?
-
Os vira-latas.
-
Bom, não vou atrapalhar. Aproveitem o namoro... Que, eu... ah, qualquer mulher
me diverte...
Assim que ele colocou sua mão no
ar, buscando algo brilhante, meus olhos fitaram seus dedos, que nada continham.
Passei a imaginar ‘Para quem ele vai? Ou para
onde ou o que?’
Deu alguns passos em direção ao
seu destino. Parou. Virou, segurando firmemente aquele saco preto, e exclamou ‘O futuro pertence a vocês, não esqueçam
disso não!’. Apontava o dedo para
nós, erguendo o braço de forma com que a sombra de sua mão fizesse escuridão em
seu rosto. O boné quase escondia seus olhos devido à má iluminação, mas ainda
assim era possível ver a expressão forte com a qual enchia a boca para soltar
aquelas palavras.
De costas, tornou a andar para o
seu começo ou seu fim, não sei ao certo. Só sei que gravei mentalmente a cena
daquele velho surgindo e sumindo por uma rua escura.
Quase não o conheço. De sua vida
eu nada sei. O homem que eu conheço é apenas aquele que aparece durante uns
instantes num pedaço de chão feito palco pra minha poesia.
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