07 maio 2013

Nós


      Eram dois. Teimosos como um cão sem coleira, ou melhor, dois. Dois cães sem coleira.

      - É.
      - Não. Não é.
      - Confia em mim.
      - Não é, porra!

      Por que certas discussões insistem em terminar por meios ríspidos? Não,... elas não terminam. Tornam-se ilusoriamente terminadas, e recomeçam mais adiante.
      A crise da meia idade os alcançava. Sonhos antigos tornando-se tolos, superficiais ou frustrados. Alimentos vivenciais tornando-se perdas. O outro tornando-se colo, proteção ou desacordo.
      Desavenças geradas por palavras não pensadas, e ao todo, a memória se esvai. A memória de si mesmos.
      Não paramos muito para pensar.

      - A gente machuca.

       E se machuca. Machuca-se tanto, que não dá conta de guardar e tende a vazar para o outro. Seria nossa constância? Desdenhar afeto, pedindo perdão?

      - Eu não tenho culpa sobre a expectativa que você criou. Não tenho culpa se ela não conseguiu abarcar o pouco que eu sou.

       O vazio ecoa as últimas vogais, que no escuro atravessavam paredes. Sentiam-se assim, em determinado momento da vida: vazios dela mesma. Cegos diante um do outro, enxergavam apenas o que lhes convinha, e seus olhos gritavam isso, como um peito gritando ajuda numa noite fria. Antes em qualquer lugar, do que preso. E presos se faziam.
       Às vezes dói deparar-se com a diferença, com o que é vário. Deparar-se com o que a gente não pensa. Sabendo-se que si próprio não mudará de lugar, dói mais ainda. Às vezes dói. E nessas vezes, doía. Ardia o peito quase rasgando, dos dois, rasgados no chão da cozinha.

      - O sol já morreu. Boa noite.
      - Morro todos os dias.

      Sem dúvida, cada dia a mais, era um dia a menos de vida. Mas como contar quantas vidas existem num dia?

      - Quantas vezes você morre num dia?
      - Morro todas as vidas que existem nele. – Um suspiro. – E renasço em cada outra.

       Um diálogo se abre durante a noite. Falando do medo, enxergam-se adiante e no presente, e no passado. Havia transcorrido muito tempo desde que viram os olhos um do outro. É estranha a sensação de ver algo já esquecido. O medo talvez tenha a qualidade de aproximar as pessoas, e, distanciar outras. Perceberam isso quando muitos, dos que ali passavam os dias, já se ausentaram por conta própria, pela impaciência ou pelo medo. Os dois estavam, nitidamente, sozinhos. E a casa, vazia.
       Porém, à medida que os ponteiros completavam suas infinitas voltas, a escuridão fazia-se familiar aos olhos. Algumas luzes não precisavam mais ser acesas. Algumas dores não precisavam mais ser gritadas.
       Eram outros dois agora.
       Ainda ouve-se palavras, com desdém, por aí “Coitados,... aguentaram um ao outro”. Coitados sim, daqueles que não se renovam. Passam em frente à mesma casa todos os dias, e não tocam a campainha. Coitados dos que não sabem que a vida é curta. Recolhem as cartas, limpam as cortinas, mas não se deparam com o cheiro de pó por baixo das camas.
       Juntos ali estiveram, e juntos permaneceram. Dos contrários, fizeram complementaridade. Da morte, um respaldo para a vida.





3 comentários:

  1. Um texto inteligente que nos coloca a pensar sobre a vida.
    Divino, Amanda.Demorei pra eu ler porque li com atenção. Mais um conto bacana e esse me fez lembrar Clarisse Lispector.

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  2. O vazio ecoa as últimas vogais, que no escuro atravessavam paredes. Sentiam-se assim, em determinado momento da vida: vazios dela mesma. Cegos diante um do outro, enxergavam apenas o que lhes convinha, e seus olhos gritavam isso, como um peito gritando ajuda numa noite fria. Antes em qualquer lugar, do que preso. E presos se faziam.
    Às vezes dói deparar-se com a diferença, com o que é vário. Deparar-se com o que a gente não pensa. Sabendo-se que si próprio não mudará de lugar, dói mais ainda.
    # Desnuda, simplesmente fantástico.

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