29 maio 2013

Onde o texto não existe


- Banco molhado dá resfriado? – delirava a voz ingênua do garoto a quem o protegia.

      A praça fizera-se limpa todas as manhãs. À noite, não. À noite os pombos cagavam. Mas pelas manhãs, a vida coloria-se no roçar das rodas, de carros, bicicletas, cestas, com o chão. A feira dava seus frutos de gente numa rua apertada.  Ao nascer daquele dia, os bancos molhados pela noite, ainda refrescavam as calças de um senhor descuidado, ou desatento. Para ele, o jornal talvez estivesse mais interessante a princípio, mas as palavras irritadas e o sacudir revolto do tecido atingido pela poça deflagrou o zelo para com o figurino.
      A criança, prestes a encontrar uma doença nas sequelas dos pingos noturnos, é reprimida em tom selvático e arreda-se do concreto.

- Praça combina com chuva, n’é mãe? – As últimas palavras ressoam em sua mente, esvaziando-a de qualquer outro conteúdo, ou memória.

Abre os olhos posicionados numa cabeça cabisbaixa. Depara-se com a arte musiva do chão. De tronco corcunda e cotovelos apoiados às coxas, revive as lembranças infantis daquele lugar. Rememora a mãe erradamente cautelosa, e o resfriado que não pegou no dia posterior. Rememora a praça, o banco, a feira. Quinze, ou vinte, anos dali se passaram, e agora folhas em rascunho preenchiam suas mãos.
Observador, procurava textos. Metia os olhos nos detalhes a fim de conhecer histórias para tornar em palavras. Além das folhas em branco fazerem-lhe companhia, a caneta teimava rabiscos incompletos. Nada, da mente, saía.
Não se sabe se pela vastidão de sentimentos que saltavam no peito, ou se pela inconstância de motivos, nenhum texto lhe vinha.
O cigarro tenta a frustração afastar.

- Jairo! Quanto tempo, meu amigo! – A voz tonificada não lhe era estranha. – Como anda Helena?

Ao mirar nitidamente, vê um antigo vizinho aproximar-se. O aperto forte do abraço denotou a grande saudade que o velho sentira durante os anos.
      Helena não estava mais presente na casa. Com receio de dizer a verdade, apenas um pensamento tomava conta de Jairo, Quando você não sabe o que responder, você faz o que?. Dentre as opções, preferiu o silêncio.
      Poucas palavras trocadas e o velho já se afastava, com pressa a chegar ao trabalho. Procurando poesia qualquer, Jairo observa os sapatos bem engraxados daquele que partia, criando música pelo andar. Na tentativa de criação, uma ou duas sentenças anotou no caderno.

- Com licença, senhor. Eu posso sentar aqui? – Um saco cheio de gordura em mãos e umas vestes desbotadas caracterizavam o homem de barba esbranquiçada, em pé ao seu lado. – É que... – Uma incerteza tomava conta de sua fala. – De todos os outros bancos, os que num tão ocupados, tão sujos. Eu posso me sentar aqui? É rapidinho... Só até acabar o pastel.

Verdade era a de que a praça não se mostrava limpa como antes. Junto dos anos, veio também o descuido com o local, que deveria destinar-se ao encontro de conhecidos ou não.

- À vontade... A praça é de todos.

- Ah senhor... Não sei. As pessoas adoram tomar as coisas como propriedade.

      Jairo, cujos olhos estranharam aquele diálogo, emudeceu-se. O robusto som de um trepidar cortou a quietude entre os dois. Por perto da praça, trabalhadores chegavam há pouco à missão de derrube de uma árvore de grande porte, antiga e com probabilidade de queda natural.

- Que nem isso aí. – Os dedos grossos do homem apontaram para o instrumento de corte. – As pessoas geralmente pensam que o planeta é delas. Mas o planeta não pertence a elas não, e sim, elas ao planeta.

O pensamento que parecia simplista, poderia fazer toda a diferença aos labores humanos. Simplista era também o modo como a fome atuava no morder e no engolir do homem. Lambuzava-se. Mais barulho de máquinas... E as pálpebras, dos olhos que antes observavam o mastigar do outro, contraem-se por conta do incômodo nos ouvidos.

- Bom, eu vou. – Limpando, com as mãos, os lábios engordurados e o canto da boca com estilhas de fritura. Suas tralhas quase faziam mais barulho que o maquinário cortando a árvore, pelo menos para Jairo, assim o era.

Ao longe era possível notar um caminhar fora de seu prumo. O homem firmava o pisar mais de um lado que do outro. Os joelhos que o asfalto amarfanhou, pensou Jairo. E aquele andar desequilibrado enfiava-se pelas cores e sons da feira, pulava caixas e desaparecia no monte de bocas que abriam e fechavam quase o tempo todo. Sumiu. Não era mais possível distinguir o desbotar da camisa com o das lonas e cabelos das donas vendedoras.
Jairo ficou ali, imóvel.
Tudo pareceu silenciado, por um instante. As bocas fizeram-se mudas, não paradas, mas mudas. Os gestos lentearam-se; quando se pôde ouvir, confundindo-se com um relógio, o compasso do andar de um salto feminino.
Numa das esquinas que dava para a praça, surgiu ela, a figura mais exuberante, talvez, do dia. Chamava, primeiro, a atenção por conta dos panos pendurados no corpo. A roupa parecia ter sido feita por recortes coloridos de tecidos quaisquer e diferenciados. O balançar da saia, junto aos passos, prendia o foco de Jairo no seu mover. Os cabelos falseadamente seus, mal brincavam com o vento. Com corpo de homem e traços de mulher, a maquiagem saltava aos olhos de qualquer um, e delimitava expressões e curvas do rosto. A familiaridade com o salto alto era visível, assim como a cara fechada por algum porquê desconhecido. O porquê, muito provavelmente, ninguém saberia, mas é incrível como a expressão de dor é tão reconhecível aos olhos. E aqueles olhos guardavam a dor de toda uma vida, ou, do calo que o sapato fazia. O pisar firme parecia mostrar pressa ou anseio pelo fim da caminhada. Um escarrar e um cuspir no canto da calçada... Jairo não sabia se aquela figura chegava ou partia, mas acompanhou seu andar por todo o quarteirão, até dissipar-se no muro pichado duma casa velha.
Ao ânimo de poder escrever algo, as palavras fugiam do papel. Mas não poderia deixar que uma poesia se perdesse dessa forma, não agora, não ali; teria que escrever algo, nem que fosse para deixar numa calçada qualquer. Pensou no rosto, na expressão, no cansaço. Suor, escreveu. Corpo que soa, pensou. Espera,... soa? Bom, quem disse que nosso corpo não soa? O meu corpo chega a gritar de vez em quando... Meu corpo inteiro soa. E assim deixou.
Mesmo assim não era o suficiente.
A mente cansada de Jairo desistiu momentaneamente e o levou ao boteco, no caminho de sua casa.

- Um pingado, por gentileza. – Café para acompanhar o cigarro estava bom por ora.

As rugas ressaltavam-se ainda mais pela cara enfezada da velha que atendeu ao pedido. Se estava realmente enfezada Jairo não sabia, mas que o andar dela, nas ancas, doía, ah... doía. O incômodo com as articulações expressava-se por grunhidos quase calados e pelo esforço em transpor um pé ao outro, até alcançar o interior do balcão.
Mais alguém adentra o lugar, bate a mão numa mesa, ao sentar.

- O de sempre! – O cheiro do álcool inundou o estabelecimento.

A velha serve o pedido com brevidade e entrega, num prato, quibe com limão, já espremido. Ela mostrava-se ameaçada com a presença do sujeito.

- Tem muito limão aqui nessa porra! Tira um pouco desse limão... Tira um pouco do limão!

Ninguém moveu um palmo. O rapaz empurra, num mesmo instante, mesa e cadeira ao se levantar.

- Eu não vou pagar por essa merda!

Sai xingando a velha, o limão, ou a própria vida. Resta apenas o prato a titubear, com o quibe espargido, no chão.

- É difícil ficar aqui sozinha, fio. Inda mais num dia desses, sem ninguém. E quando vem algum bêbado igual a esse aí, a gente tem que ficar quieta pra não levar uma surra.

- Ruim ter que arrumar tudo sozinha também, né? – Jairo ajuda-a repondo a mesa no lugar.

- Ah, sim! Não compensa abrir num dia desse não. Só desgasta a gente. – O tempo já havia desgastado muito mais do que a própria faina. – Inda bem que cê tava aqui comigo... Caso contrário, não sei não...

Mais uma vez Jairo optou pelo silêncio, e pelos tragos de um filtro vermelho.
Peito aquecido, pelo café ou pela fumaça, e dinheiro estendido no balcão. Caçando moedas num pote empoeirado, a velha enchia e esvaziava o peito com dificuldade, parecia. Lançava mão de força demais na inspiração e, em contrapartida, soltava o ar como num desoprimir do peito. Deixava o pobre Jairo preocupado com o dia seguinte da velha. E com todos os seus outros dias.

- Aqui está. Muito obrigada, fio. – Surpreendentemente, um sorriso.

Nasceu um sorriso em Jairo. Mas, sorriso é coisa que entra, ou que sai? Tanto faz. Ele abriu a porta da casa com o mesmo sorriso com o qual deixou o boteco. No trajeto, tornou a rememorar coisas. Lembrou-se mais uma vez da infância, e dos tantos outros que passaram por ele. Lembrou-se também do anseio por um texto que pudesse surgir na cabeça.
Jogado num canto da sala, percebeu.

Queira tanto escrever, queria tanto ter uma história para contar, e pensei estar procurando por onde a historia não existia. Não percebemos que às vezes, pra encontrar, temos que esquecer.

Esqueceu que a história já estava se construindo e se fazendo pronta, dentro dele mesmo. Esqueceu, e escreveu.



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