17 julho 2013

Menino moleque

O tempo ainda há de demorar a apagar da minha mente os traços mulatos daquele moleque banguela que batia à minha porta, aos domingos, a pedir um pedaço de bolo de fubá ainda quente.
        - Toma aqui, menino. – Era de praxe: os pés semi pelados pisoteando, com certa velocidade, a terra esburacada do quintal, rumo ao local de abrigo e descanso. – E não corre assim moleque! Um dia cê estoura a cara todinha!
             Tantas vezes eu avisei, em nenhuma delas ele acatou o pedido de preocupação. Aristides morava a cinco casas, subindo o morro.
              Não fosse esse moleque, minha casa era vazia. Ou cheia de solidão. Coitada era a mãe que, de quatro filhos, sobraram um outro mais Aristides.
- Dá pra imaginar tamanha dor num coração? – Escutava-se frequentemente através das paredes nas casas vizinhas.
Paredes finas demais para vidas saturadas de padecimento.
- Ôh nego, e cê ainda acredita nas estórias desse garoto? - A velha que tinha a cabeceira de sua cama encostada na parede rente ao vaso sanitário do meu banheiro, não bastasse as reclamações acerca do barulho que a tubulação fazia, ainda ficava me botando asneiras na cabeça.
- Aquieta mulher, que dos filhos todos, ele é mais esforçado.
- Mas cê sabe bem porque o irmão mais velho foi morto. – Lembrei-me das paredes finas demais.
Eu queria poder destruir aqueles olhos irônicos. Eu gostava do garoto.
- Não finge não, nego. Cê sabe todo o bafafá que deu na época. E outra, mexeu com coisa errada... já era.
Eu, realmente gostava do menino, do qual o tempo não me deixou aproveitar os trejeitos infantis.
- Eita Aristides, eu lembro de você pequenininho, festejando a vitória de uma pelada.
- Ah seu nego, isso faz uns anos já hein...
- Tempo é coisa que passa, meu filho.
Passa e passa depressa.
- Tempo – Completei – é coisa que não deixa a gente aproveitar a melhor fase da nossa vida.
- Até porque é só depois que ele passa que a gente vai descobrir que aquela era a melhor fase da nossa vida. Né não, seu nego?
- Cê é maroto hein menino...
Aristides cresceu e aprendeu a ser um daqueles malandros que encanta a gente. Ele nunca passou a perna em pessoa que fosse, era um bom rapaz. Sujeito carinhoso. Mas de uma coisa era dotado: uma habilidade tremenda com o locutório.
Guardo com graciosidade uma de suas divagações infantis.
- Seu nego, o senhor sabe de tudo?
- Porque pergunta isso, filho?
- Quando eu crescer, eu quero saber...
- Saber sobre o que exatamente?
- Sobre tudo, oras.
Aquele menino sabia mesmo como me tirar gostosas risadas do peito. Como se no peito fosse onde morassem as risadas.
- Ai seu nego, eu queria saber de tudo... Às vezes eu queria. (...) Não precisa ser tudo sobre tudo, não. Pode ser um pouco de cada coisa. Mas tem que ser de tudo.
Tinha uma confiança em mim esse moleque, que às vezes eu ficava até com medo do que dizer, do que ensinar. Ele sempre aprendeu tudo muito rápido, talvez pela necessidade de acolitar uma mãe solitária, sendo o companheiro de alguém sem companhia, ou talvez pela própria abelhudice.
É ruim pensar que o mundo nos ensina, às vezes, ou muitas delas, pela dor.
- Faz tempo que não te vejo Aristides.
- Oi, seu nego. – cabisbaixo – Não ficou sabendo? Mataram meu irmão.
Que corte na garganta eu senti. O relógio pareceu parar por alguns segundos, retornando a posteriori.
- Como você tá, meu filho?
- Não sei. Eu não tinha muito contato com ele. – Aristides nunca havia usado um tom seco dessa maneira. – Mataram ele lá dentro. E foi polícia. Meu irmão já tinha treta com quase todo mundo. Ontem mataram a família do Borges aqui pra cima mais ele lá na cadeia.
Essa foi uma das vezes em que tive medo do que dizer.
- É filho, ainda tem muito torturado em campos de concentração.
- Como é que é seu nego?
Talvez não fosse hora pra dizer aquilo.
- Nada não, menino. Não é nada.
            Esse moleque de muitos sonhos ainda ia aprender. Nessa vida, não é preciso ter dinheiro pra essas coisas entender.
         Poucos meses fizeram-se sequência. O cheiro do bolo quase pronto aguçava meu estômago, quando Aristides chegou em minha casa com uma agitação exacerbada.
             - Cê tá bem, menino? – Não estava tudo bem.
            - Eu não tenho dinheiro pra bancar os estudos, seu nego! Tô trabalhando, fazendo tudo direitinho, mas não dá! E outra, essa estória de faculdade pública é só pra filhinho de papai! Me diz: como é que eu vou bancar as despesas todas pra poder estudar, me diz?! Além do que, como é que eu vou acompanhar tudo, se no colégio era a várzea de sempre? Isso tudo só serve pra neguinho ganhar dinheiro, seu nego! Só serve pra isso!
          Sentado, sua mente ia longe.
 - Porque que pra conhecer, eu tenho que pagar tão caro? Porque que eu não posso ser aquele sujeitinho que nasce numa casa pobre e se dá bem na vida, igual a gente vê nas notícias da tevê? Eu tinha que ser esse miserável? Não é justo, seu nego. Eu não dou conta de tudo isso, não. Vê só a minha mãe, ela é exemplo do que eu tô falando! A gente luta várias lutas durante uma vida inteira pra que? Só pra conseguir sobreviver?
 Eu queria poder dizer algo contrário do que ele estava pensando. O problema é que eu pensava da mesma forma. Eu queria poder dizer a ele que as coisas iam mudar, que ele ia poder estudar, poder viver bem, longe daquele tumulto todo. Eu queria dizer, mas eu não podia. Minha vida foi assistir, daquela casa, às mesmas estórias se repetirem, ano a ano, com as pessoas mais próximas. Eu não podia mentir pro menino que eu vi crescer. Eu queria dizer diferente, mas não disse. Respondendo a própria pergunta, ele também não falou muita coisa.
- É seu nego, eu acho que é assim mesmo.
                  A cabeça baixa dilacerou-me por dentro.  



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