O
tempo ainda há de demorar a apagar da minha mente os traços mulatos daquele
moleque banguela que batia à minha porta, aos domingos, a pedir um pedaço de
bolo de fubá ainda quente.
- Toma aqui, menino. – Era de
praxe: os pés semi pelados pisoteando, com certa velocidade, a terra esburacada
do quintal, rumo ao local de abrigo e descanso. – E não corre assim moleque! Um
dia cê estoura a cara todinha!
Tantas vezes eu avisei, em
nenhuma delas ele acatou o pedido de preocupação. Aristides morava a cinco
casas, subindo o morro.
Não fosse esse moleque, minha
casa era vazia. Ou cheia de solidão. Coitada era a mãe que, de quatro filhos,
sobraram um outro mais Aristides.
- Dá
pra imaginar tamanha dor num coração? – Escutava-se frequentemente através das
paredes nas casas vizinhas.
Paredes
finas demais para vidas saturadas de padecimento.
- Ôh
nego, e cê ainda acredita nas estórias desse garoto? - A velha que tinha a
cabeceira de sua cama encostada na parede rente ao vaso sanitário do meu
banheiro, não bastasse as reclamações acerca do barulho que a tubulação fazia,
ainda ficava me botando asneiras na cabeça.
-
Aquieta mulher, que dos filhos todos, ele é mais esforçado.
-
Mas cê sabe bem porque o irmão mais velho foi morto. – Lembrei-me das paredes
finas demais.
Eu
queria poder destruir aqueles olhos irônicos. Eu gostava do garoto.
-
Não finge não, nego. Cê sabe todo o bafafá que deu na época. E outra, mexeu com
coisa errada... já era.
Eu,
realmente gostava do menino, do qual o tempo não me deixou aproveitar os
trejeitos infantis.
-
Eita Aristides, eu lembro de você pequenininho, festejando a vitória de uma
pelada.
- Ah
seu nego, isso faz uns anos já hein...
-
Tempo é coisa que passa, meu filho.
Passa
e passa depressa.
-
Tempo – Completei – é coisa que não deixa a gente aproveitar a melhor fase da
nossa vida.
-
Até porque é só depois que ele passa que a gente vai descobrir que aquela era a
melhor fase da nossa vida. Né não, seu nego?
- Cê
é maroto hein menino...
Aristides
cresceu e aprendeu a ser um daqueles malandros que encanta a gente. Ele nunca
passou a perna em pessoa que fosse, era um bom rapaz. Sujeito carinhoso. Mas de
uma coisa era dotado: uma habilidade tremenda com o locutório.
Guardo
com graciosidade uma de suas divagações infantis.
-
Seu nego, o senhor sabe de tudo?
-
Porque pergunta isso, filho?
-
Quando eu crescer, eu quero saber...
-
Saber sobre o que exatamente?
-
Sobre tudo, oras.
Aquele
menino sabia mesmo como me tirar gostosas risadas do peito. Como
se no peito fosse onde morassem as risadas.
- Ai
seu nego, eu queria saber de tudo... Às vezes eu queria. (...) Não precisa ser
tudo sobre tudo, não. Pode ser um pouco de cada coisa. Mas tem que ser de tudo.
Tinha
uma confiança em mim esse moleque, que às vezes eu ficava até com medo do que
dizer, do que ensinar. Ele sempre aprendeu tudo muito rápido, talvez pela
necessidade de acolitar uma mãe solitária, sendo o companheiro de alguém sem
companhia, ou talvez pela própria abelhudice.
É
ruim pensar que o mundo nos ensina, às vezes, ou muitas delas, pela dor.
-
Faz tempo que não te vejo Aristides.
-
Oi, seu nego. – cabisbaixo – Não ficou sabendo? Mataram meu irmão.
Que
corte na garganta eu senti. O relógio pareceu parar por alguns segundos,
retornando a posteriori.
-
Como você tá, meu filho?
-
Não sei. Eu não tinha muito contato com ele. – Aristides nunca havia usado um
tom seco dessa maneira. – Mataram ele lá dentro. E foi polícia. Meu irmão já
tinha treta com quase todo mundo. Ontem mataram a família do Borges aqui pra
cima mais ele lá na cadeia.
Essa
foi uma das vezes em que tive medo do que dizer.
- É
filho, ainda tem muito torturado em campos de concentração.
-
Como é que é seu nego?
Talvez
não fosse hora pra dizer aquilo.
-
Nada não, menino. Não é nada.
Esse moleque de muitos sonhos ainda ia
aprender. Nessa vida, não é preciso ter dinheiro pra essas coisas entender.
Poucos meses fizeram-se
sequência. O cheiro do bolo quase pronto aguçava meu estômago, quando Aristides
chegou em minha casa com uma agitação exacerbada.
- Cê tá bem, menino? – Não
estava tudo bem.
- Eu não tenho dinheiro pra
bancar os estudos, seu nego! Tô trabalhando, fazendo tudo direitinho, mas não
dá! E outra, essa estória de faculdade pública é só pra filhinho de papai! Me
diz: como é que eu vou bancar as despesas todas pra poder estudar, me diz?! Além
do que, como é que eu vou acompanhar tudo, se no colégio era a várzea de
sempre? Isso tudo só serve pra neguinho ganhar dinheiro, seu nego! Só serve pra
isso!
Sentado, sua mente ia longe.
-
Porque que pra conhecer, eu tenho que pagar tão caro? Porque que eu não posso
ser aquele sujeitinho que nasce numa casa pobre e se dá bem na vida, igual a
gente vê nas notícias da tevê? Eu tinha que ser esse miserável? Não é justo,
seu nego. Eu não dou conta de tudo isso, não. Vê só a minha mãe, ela é exemplo
do que eu tô falando! A gente luta várias lutas durante uma vida inteira pra
que? Só pra conseguir sobreviver?
Eu
queria poder dizer algo contrário do que ele estava pensando. O problema é que
eu pensava da mesma forma. Eu queria poder dizer a ele que as coisas iam mudar,
que ele ia poder estudar, poder viver bem, longe daquele tumulto todo. Eu
queria dizer, mas eu não podia. Minha vida foi assistir, daquela casa, às
mesmas estórias se repetirem, ano a ano, com as pessoas mais próximas. Eu não
podia mentir pro menino que eu vi crescer. Eu queria dizer diferente, mas não
disse. Respondendo a própria pergunta, ele também não falou muita coisa.
- É
seu nego, eu acho que é assim mesmo.
A cabeça baixa dilacerou-me por dentro.
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